Andreas Chamorro nasceu em 1994. É escritor, editor e autodidata. Enquanto escritor, publicou as coletâneas de contos Divindades Solitárias (Editora Kotter, 2021) e A orgia perpétua ou o relatório de Pimenta (Editora Patuá, 2023). Tem textos publicados em antologias, como Zarpadas (Abarca Editorial, 2023) e em revistas digitais.
A escrita, como toda instância da arte, substitui e configura espaços para que determinado objeto não desapareça. A palavra e a linguagem como as ferramentas basais são agentes da plasticidade de uma obra literária e, em suma, seu efeito. O objetivo da linguagem é captar e assim engessar determinado alvo, o modo de captação e os diferentes alvos incitam o fenômeno chamado de “movimentos artísticos” ou “vanguardas”, em outras palavras, em alusão a Quignard, o modo e o objeto de interesse de certos autores e autoras podem ser relacionados em uma sociedade dissociada, afinal os artistas de um mesmo tempo não pertencem a uma árvore e sim estão cada em sua casca corporal, assemelhando-se pelas expressões em harmonia. O século XIX sofisticou uma clara divisão na apreensão da linguagem empregada pela literatura ocidental, a fricção entre realismo e psicologismo, a impossível mistura do fora e do dentro fazendo-os campos distintos. O contemporâneo ilumina isso, há uma procura por narrativas pessoais, no século XXI o eu impera. Mesmo que autores como Thomas Mann e seu Serenus, narrador do romance Doutor Fausto, tenham explorado o terreno interno de um narrador que é testemunha, a exploração da interioridade e da subjetividade avançou com rapidez, chegando ao cume ainda insuperável em 22 anos com a publicação de Ulysses. Os discursos estavam fadados a encontrarem apreço a maneira que o escapismo e a evasão fossem desejados pelo leitor.
Todo ser humano se depara com a clara divisão desses dois mundos (interior e exterior) – sendo possível elogiar a ficção uma vez que ela é a criação humano mais apta a fornecer uma possível intercambiação dos mundos –, há a percepção alheia (alteridade) e há autopercepção. Portanto, em literatura, textos em primeira pessoa e textos em terceira pessoa atingem de maneiras diferentes o mesmo leitor. Ao fim do século XIX, temo profundas mudanças em ponto de arrebentar. A Europa declina ao colapso, Proust está escrevendo À La Recherche, Freud orbita o que será a ideia de inconsciente, nasce Joyce, nasce Virginia Woolf, nasce Mann, nasce Faulkner. Muitos dos nomes, dentro e fora de literatura, que auxiliaram no avanço do debate, nasceram e se formaram na virada do século e, os que interessam para preâmbulo desta resenha-ensaio são os autores que exploram a interioridade em seu máximo, respeitando a dimensão da ousadia de cada um.
A teoria literária postulou três técnicas usadas na exploração interior. Em ordem de aproximação com o cerne (inconsciente) do objeto: discurso indireto livre, monólogo interior, e o termo roubado da psicologia, fluxo de consciência. Os autores citados utilizam tais técnicas de maneiras particulares, sendo justamente o que os destaca na produção intelectual humana universal. Como toda boa invenção, não creio essas técnicas terem surgido racionalmente senão como para operação momentânea, afinal toda literatura e todo livro dependem de uma harmonia única e instantânea, quase ad hoc. Um monólogo interior que é levado pela memória (interior) foi o que surgiu a Proust, um discurso indireto livre que é levado por uma tonta interioridade foi o que surgiu a Virginia Woolf, Joyce que esgarçou a coisa ao extremo no canônico último episódio de Ulysses, mas ainda o fluxo de consciência e o monólogo interior não dominam todo o calhamaço, são notas da orquestra. E Faulkner, muito embebido em Joyce, também foi destemido perante o experimental, concebeu o capítulo inicial de O som e a fúria e, dos quatro citados, é o único que contribuiu com a aderência do fluxo de consciência como técnica operativa na narratologia, a fragmentação inerente da técnica serve muito bem para instigar um leitor conforme a configuração do enredo, onde é possível os movimentos temporais (flashforward, flashback) tão caros a produção moderna e contemporânea, e foi Faulkner quem conseguiu isso.
A primeira geração do modernismo no Brasil não introduziu a exploração do interior humano tanto quanto a segunda e a terceira e Clarice Lispector é a santa da causa. Sabemos que Clarice leu Um retrato do artista quando jovem por indicação (sábia) de Lúcio Cardoso e a experiência marca a concepção do seu primeiro romance. Não é à toa que Perto do coração selvagem, a meu ver, seja, tecnicamente, de uma fase distinta de Clarice autora de outras obras; nessa obra o fluxo de consciência quase emerge, contudo Clarice não faz como Joyce e liberta sua personagem de uma narração em terceira pessoa e quando o faz a organização aproxima sua prosa de um monólogo interior (G.H.). O fato é que a exploração subjetiva ancorada na figura de Clarice e empregada por outros autores como Graciliano Ramos e seu Angústia gerou uma onda que alcança três nomes que, a maneira de Faulkner, avançam a técnica em nosso território.
Compartilhando o legado com Clarice, Lygia Fagundes Telles construiu uma obra contundente que flagra o melhor que a investigação subjetiva pode iluminar. Dois de seus mais lidos romances lançam mão das três técnicas em consonância com a intenção da autora, seja política (As meninas) ou a clara relação dos espaços primevos da realidade, no romance sobre transposição Ciranda de Pedra. Outra autora nos dá o elo através de uma dedicatória. Em 1970, Hilda Hilst parte para a prosa e publica Fluxo Floema, onde o primeiro texto é dedicado a Lygia. Hilst, leitora de Joyce, não tem medo, concebe o fluxo de consciência mais inimitável. Além da pura exploração interior, o objeto de Hilda é mais profundo e completo, seus dedos em prosa captam diferentes vozes num só tempo, como se ela colocasse peixes de espécies diferentes para nadarem em uma mesma vau de rio. Outro aspecto que vale a pena destacar é o humor, presente em Joyce mas ausente na maioria embebida de modernidade, fugindo do cartesiano e afogando no emaranhado da alma, não há do que se rir em Faulkner, em Proust, em Virginia. Por último, há Raduan Nassar que, nos anos 1975, ao publicar Lavoura Arcaica aproxima a técnica do fluxo de consciência da poesia.
A exploração interior na literatura permanece e, julgo, ainda não viu seu auge. Em um mundo de redes sociais, o interesse pelo eu do outro encontra o paraíso na descrição verbal de uma outra interioridade. Penso que o “eterno retorno” de nossa contemporaneidade é o discurso em primeira pessoa como evasão da realidade tal como a literatura da passagem do helenismo para a época medieval. Por esse aspecto, as técnicas narrativas, com destaque ao fluxo de consciência, se bem utilizadas, podem conceber avanço e novos clássicos “do interior” nascerão.
O romance Memória de ninguém (Nós, 2022) publicado por Helena Machado é herdeiro da corrente literária que explora o psiquismo, contudo, a medição do uso técnico, o sábio uso da intertextualidade e a orquestração (em sentido bakhtiniano) proposta pela autora denotam uma distinção merecedora de atenção.
Em Memória de ninguém temos um mote simples, a protagonista não nomeada é uma pintora que perdera o pai às portas dos quarenta anos visitando sua casa de infância com suas irmãs e, como ocorre em inúmeras obras dos supracitados, é sua matéria interior durante esse processo que interessa a autora; é onde mora a verdadeira história do romance.
Tive a oportunidade de assistir uma mesa de Helena Machado na livraria Ponta de Lança, em São Paulo, e ouvi a algumas de suas entrevistas em podcasts como o Lume e um detalhe, melhor, uma fala recorrente nas explicações da autora é o quão observadora da feitura inconsciente em sua própria obra ela é. Ressalto isso pois penso que toda a crítica e teoria literária seja o verdadeiro estudo do inconsciente mas que, em razão da invisibilidade do pulso inconsciente, ainda não compreendeu isso. Atrás das indagações como “por que o autor fez isso?” há o inconsciente individual, inerente ao sujeito, portanto também agente em sua expressão. Helena observa como seu inconsciente norteou o enredo.
Também não exime seu fazer literário de uma relação com a psicanálise. Em Memória há passagens inegáveis na primeira metade.
“E se o inferno for coletivo como Jung diz ser o inconsciente (…)” página 39
“muita substituição do todo pela parte.” página 57
“o som só não é mais sinistro que o cheiro, que tem poder de chamar qualquer coisa.” página 61
Há também uma personagem que finca o diálogo de Helena com a psicanálise. Em suas memórias elucubradas, a protagonista é vezes atravessada por suas sessões de terapia e falas da analista, como um simulacro da intromissão proposital de um lacaniano a personagem da analista serve de ponte, incita o caminho psíquico que a protagonista seguirá nas próximas páginas.
Enquanto esta resenha-ensaio se encontrava em estado embrionário, foi publicado no Brasil um livro de não-ficção que intenta realocar as pseudociências e um debate caloroso se espalhou na bolha digital acadêmica pelo fato da autora ter colocado a psicanálise na mesma bandeja do tethahealing e da constelação familiar. A psicanálise sofre a mesma repreensão que a literatura, assim como toda ciência humana. E, dentro desse debate antiquíssimo, entre ciência exata e ciência humana – que ressoa a cisão clássica da literatura, descrita no primeiro parágrafo, realismo e psiquismo –, a literatura e a psicanálise além de aliadas, são praticamente da mesma família. Para além dos conhecidos flertes como o texto Lituraterra de Lacan, inúmeros escritores que foram analisantes ou até mesmo o flerte primevo com a devoção de Freud por certos escritores e pela literatura grega. O casamento negativo – psicanálise e literatura se cruzam e se distanciam, nunca conseguem ocupar simultaneamente o mesmo lugar – dessas duas práxis se dá no objeto de interesse compartilhado: a palavra. Segundo Rodrigo Camargo, em sua tese comparativa entre Lacan e Perec, apoiado em Alfredo Eidelsztein, “um psicanalista propriamente falando, não escuta; um psicanalista na sua pratica clínica lê algo naquilo que ouve, isto é, grosso modo, na operatória sobre o inconsciente por parte do analisa só existem leituras não escutas.” O mesmo jogo de falta e desejo, de palavra e silêncio, que ocorre no estudo psicanalítico, ocorre no fazer literário e encontra seu eco nas obras de exploração psicológica. Nesse sentido, do manuseio do silencio, Clarice Lispector é o maior nome.
Isso para dizer que fica visível que Helena Machado lançou mão de seu conhecimento psicanalítico no tratamento e feitura de seu fluxo de consciência. Escrever com fôlego em fluxo de consciência ou monólogo interior implica na criação livre do inconsciente de uma outra pessoa e a autora sabe disso. O símbolos erguidos em todo o romance não deixam dúvidas. Memória de ninguém abre com uma imagem:
“Meu pai gostava de fazer Pá (…) Meu pai colocava o dedo indicador em riste, levantava o dedão e fazia Pá!” página 7
Este belo início dá a impressão de que o leitor é disparado na narrativa, assim como a protagonista é engatilhada pela lombada em que o carro a leva com as irmãs em visita a casa de infância passa abruptamente. Não é com a simplória e falseada livre-associação que um fluxo de consciência mal ajambrado pode expressar. Mas com o claro recado do domínio de ambos os inconscientes, o de autora e o de personagem. Acaba que temos um grupo de manipulação; os agentes na reflexão da protagonista acabam se dividindo entre a personagem da terapeuta, a casa de infância, o cão Chang Lang, todos sob comando da autora e o efeito dúbio (intromissão e incitação) remetem ao trem que “atrapalha” o monólogo de Molly Bloom em Ulysses e o cheiro de Caddy no monólogo de Benjy Compson. O domínio do caminho que o interior de uma personagem percorre denota que, mesmo que Helena tenha reformado todo o texto portanto toda a reflexão, após sua redação, seu domínio técnico é prévio a feitura do romance.
Em entrevistas, Helena Machado descreve como fluxo de consciência sua técnica, contudo, sua prosa, se vista estritamente sob a lente da radicalidade, foi até bem moderada neste primeiro romance. Não afirmo que não há o predomínio da técnica, todos os ecos possíveis gerados no uso dela estão no livro, porém, a autora acoplou ao texto instancias particulares que levam o leitor atento – sobretudo na releitura, Helena Machado possivelmente será autora de livros que crescem na releitura –, após visível a arquitetura, a enxergar como branda a experimentação.
O fluxo de consciência como feito a partir do Ulysses, radical, frenético, denso e aparentemente randômico e que encontrou discípulos como Faulkner e Hilda, carrega efeitos colaterais em seu uso, efeitos esses identificados pela teoria.
O primeiro aspecto é o da travessia – caro a Helena Machado. Ler um texto em fluxo de consciência exige atenção e interpretação redobradas por parte do leitor. O enredo e suas artimanhas estarão na interioridade da personagem e em paralelo na ação externa, no caso de Memória a divisão se dá entre as lembranças com o pai, namorados, as irmãs, a mãe e a casa e a ação externa, a visita na casa de infância em Ilha do Amor. O registro visual pode ser a grande dificuldade do uso da técnica; a narração se pulveriza em Molly Bloom, em Benjy Compson, em Hilda, o que contribui ao efeito de travessia. A descrição pode deixar inverossímil um texto em fluxo de consciência, porque nós apenas pensamos visualmente, não descrevemos as coisas para nós mesmos. Essa asfixia do narrador e da descrição talvez tenha sido o que brecou Virginia Woolf em Mrs. Dalloway e Ao Farol, livros com publicações sob a sombra de Ulysses, onde a presença do fluxo de consciência é colocado, com ajuda da genialidade da escritora, sob a voz do narrador; inclusive visualizo isso na célebre frase de início de Mrs. Dalloway, em um falseado discurso indireto livre, “Mrs. Dalloway said she would buy the Flowers herself”, ela diz (externo) mas é para si mesma. Por isso o cinematográfico de Woolf não ecoa em Faulkner. Em Memória de ninguém esse problema foi muito bem tratado. Helena Machado se mostra uma eficiente escritora quando em seu fluxo harmoniza a intensidade de sua técnica conforme o gatilho e objeto da lembrança da protagonista, através de um aspecto do fazer literário que manuseia bem: o ritmo. Desse modo, o fluxo de consciência está “no ar” o tempo todo, mesmo que passagens mais organizadas, se analisadas de perto, pareçam monólogos interiores, pois há descrição e criação de imagem, há entrecenas brandas, o bom uso dos conectivos inserem um fluxo mais frenético ao bem-querer da autora.
A questão visual em seu limite, ao ter sido apresentada a Helena, foi resolvida de maneira inventiva. Ao longo do texto, o leitor é interrompido por imagens que, ao primeiro olhar, soarão concretistas mas não são. A autora diz em uma entrevista que o primeiro deles ela fizera ao se deparar com a dificuldade de descrever o chacoalho abrupto do carro passando sem parar sobre a lombada na cena inicial. Além de trazer respiro na leitura, as imagens são bem pensadas, como o futuro encaixotado – que me lembrou o fim de Detetives Selvagens – e o balão. Considero um dos aspectos mais interessantes do romance.
Em Memória de ninguém pude observar um bom uso da intertextualidade. Helena Machado senta para escrever e lança mão de um arsenal para dar músculo a sua história. Desde referências a marcas e produtos culturais daquilo que chamamos de Cultura Pop, o que situa o leitor contemporâneo, a alusões, citações e personagens homônimos (Hilda) que marcam os precursores do romance. A prosa de Helena soa original, mas se pudesse revelar o eco que sinto eu diria ecos clariceanos e hilstianos. O poético em Memória é pontual:
“A morte é assim, um entre sem medida.” página 35
Assim como o humor – que vezes rodeia e emerge em cenas “obscenas” – que, ainda que completamente contemporâneo encosta em um tom hilstiano, sobretudo no capítulo “Não achei nem a bengala”.
Clarice surge como um vulto em momentos distintos no livro:
“Porque meu pai era capaz de carregar elefantes com suas pernas bambas e uma cartomante tinha me dito que meu pai só morreria aos 90 e dali a duas semanas ele faria 82.” página 16
“No avião de volta ao Brasil, eu pensava em G.H., na barata, na Clarice, nas entranhas e na terceira perna que eu, tardiamente, tateava encontrar. E hoje, mais tarde, ainda, não achei nem a bengala.” página 229
Joyce ressoa em transgressões e imaginativas à lá Molly Bloom, e a mesma surge pontualmente em duas cenas espelhadas no livro, contribuindo para o humor preciso de Helena Machado.
Contudo, apartando a exploração interior e suas técnicas, a protagonista e sua história poderiam muito bem ser posicionadas ao lado de personagens herdeiras de Julian Sorel. Desde o título ao discurso da protagonista é pautado no medo de desaparecer. Não é que a protagonista não tenha memória de ninguém, ela não quer acabar sendo memória de ninguém. O título está no negativo.
“(…) enquanto eu sou toda vestígios que escapam à vista” página 143
A protagonista poderia ser descrita como uma mulher de anseios mas que acaba se deixando levar pela vida. Toda a rememoração engatilhada que é o romance nada mais é que sua tentativa em não desaparecer, mesmo que sob a ilusão de uma busca identitária, afinal o pai, a mãe, as irmãs e os homens que amou e que povoam suas memórias também são parte do todo que a protagonista é. Memória de ninguém é um profundo garimpo subjetivo de si mesma.
A ação externa de fato no romance pode ter durado nem duas horas. As irmãs e a protagonista chegam na casa, desconfiam não ter ninguém, uma delas faz xixi na terra, o caseiro aparece, seu cão aparece, então a mãe, que estava nos fundos, aparece e temos o último capítulo do livro. Portanto, das 268 páginas de Memória de ninguém, quase o todo é composto de investigação interna. A protagonista caça seu passado inteiro conforme vive a ação externa, a escolha daquilo que a levaria ao mundo da memória e o que resgataria dele foram bem posicionados, creio que na plena intuição do instantâneo da escrita, visto Helena ter se deixado levar pelo próprio inconsciente. E nesse aspecto, o medo de desaparecer cobre o texto.
Segundo ela mesma “aos quase quarenta, eu recebo meus pecados” página 43. Atrás da palavra “pecados” eu diria espelhos. O pai não nomeado (como ela) que é criado em Ilha do Amor e que a dá um tio poeta; as irmãs gêmeas que não parecem com ela; a mãe à flor da pele, cheia de anseios e azarada no amor; os homens que se relaciona além de espelharem o pai e os padrastos, espelham seu pisar dúbio no mundo, pois a protagonista de Memória de ninguém é uma jovem velha, uma pintora que não pinta (o que me lembrou Leonardo da Vinci e sua dificuldade em terminar, por vezes utilizando tinta a óleo em suas pinturas à guisa de prorrogação. Freud, uma vez, ao analisar esse aspecto, interpretou que Da Vinci tinha um apego à falta da mãe, por isso não terminava suas obras. Um tesão no vazio), uma “ninguém” mas cheia de história, uma filha que não quer ser mãe, uma amante que ama e não ama, dentre outras ambivalências.
Alguns aproximam o romance de Helena Machado ao gênero da autoficção. Não estão de todo errados, a autora não esconde que o pai, as irmãs, a mãe, certas memórias e elementos são livremente baseados em sua experiencia íntima e familiar. Se ajustarmos a lente para observarmos esse aspecto diria que o romance de Machado não é autoficção, mas que o gênero é um dos elementos que o compõem. A semelhanças biográficas, a meu ver, são espelhamento ao título e à vontade de não ser uma memória de ninguém da personagem.
Me propus a desenvolver essa resenha-ensaio ao participar do clube de leitura do Lume a respeito do romance de Helena. A ideia surgiu quando notei que várias pessoas ressaltaram a dificuldade de atravessamento do fluxo de consciência, pautados em leituras anteriores (muitos autores clássicos por mim aqui citados), mas que a experiencia com Memória havia sido diferente, sem entraves. De início eu associei ao humor, elemento de fato raro nos romances psicológicos, como se a filosofia moderna e o cume existencialista tivessem chumbado o interior humano, como se uma tempestade também não banhasse flores. Entretanto, uma releitura atenta iluminou as chaves de interpretação e foi que empreendi a redação do presente texto.
Então, concluo que o fácil encantamento e a captação da prosa em fluxo de consciência de Helena Machado se deve a simultaneidade de concreta imagetificação do subjetivo (como escritora da memória, Machado tem sucesso em capturar a imagem do véu da lembrança), humor plástico (vezes escrachado, vezes próximo ao teatral) e técnica moderada.
Um último efeito colateral do uso do fluxo de consciência a ser citado se dá não no autor mas no leitor. Todo texto de ficção, ainda mais se escrito sob alguma proposta estética, guarda seu efeito em dose única. A bagunça de todo fluxo de consciência se organiza mais a cada releitura, portanto sua velocidade e sua radicalidade diminuem. Se Helena Machado distender mais sua radicalidade em romances futuros, poderemos testemunhar uma nova aproximação dessa técnica que já é secular.
Fotografia: Cascata do Pinel – Marc Ferrez (Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles).